SOÇOBRO – exposição individual de Lilian Maus

Amo o amor dos marinheiros, que beijam e se vão.” Pablo Neruda

 

Na exposição Soçobro (abertura prevista para o dia 8 de junho de 2017, às 19h, no Paço Municipal Porto Alegre, onde também haverá o lançamento da Coleção de Postais Estudos sobre a Terra, uma parceria da artista com a editora AZULEJO), Lilian Maus cria uma rota de navegação através de imagens de arquivo, pinturas, fotografias e textos. O trabalho foi concebido a partir da travessia lacustre realizada em Osório, a remo de taquara, com o pescador José Ricardo, no seu barco Beija-flor. O trajeto, executado em 2016, foi desenhado com base em pesquisa histórica sobre o maior desastre lacustre do estado, ocorrido na Lagoa da Pinguela, no dia 20 de setembro de 1947. O barco, que leva o nome de Bento Gonçalves, um dos líderes da Revolução Farroupilha, soçobrou justamente no dia em que se comemora, no Rio Grande do Sul, a Revolução. As obras apresentadas são uma homenagem aos 20 náufragos, sendo que destes apenas 2 sobreviveram. Um deles, Arzemiro Viana, era tio de José Ricardo, que refaz o percurso com a artista mesmo sabendo que, em dias de vento minuano, a vastidão de águas doces pode virar mar.

 

…………………………………………..

Excertos do Diário de bordo da travessia:
Foto: Santos Vidarte (Ricardo João Borges, moço do farol, aponta para o Bento Gonçalves submerso)*

 

“Eu já estava prevendo que algo ia se dar. Por duas vezes perguntei ao patrão se não estávamos correndo perigo, mas ele me respondeu que não, dizendo: ‘Hoje é dia de Bento Gonçalves e nada poderá acontecer a este Bento’. Nisto veio uma rajada de vento e o barco virou. (…) Fui nadando sozinho e quando consegui tomar pé, no junco do Camacho, estava que não aguentava mais nem um minuto. Me deu um tremor de frio e uma falta de ar que eu pensava que ia morrer ali mesmo, como um bicho, sem o socorro de um vivente. Lembrei-me, porém, que estava perto da casa dos Quinca Leandro e fui me arrastando pra lá, como cobra por meio dos taquarais. Durante muito tempo não pude dizer senão que o ‘Bento’ tinha naufragado e que tinha ficado apenas um homem [Arzemiro Viana] em cima da chaminé. Depoimento de João Clemente Vilar*
 
“Saímos do porto (…) às 11 passadas. A viagem ocorreu normal, tanto na Lagoa do Marcelino, como na do Peixoto, e no Canal do Caconde. Mas quando entramos na Pinguela, vi que o vento era bravo. (…) Ficaram no barco apenas João Balsani e eu na chaminé. (…) O Neptuno e o João Clemente lutavam com a tábua do toldo, que de vez em quando o vento tomava das mãos deles. Por mais de três horas eles nadaram para terra, enquanto eu gritava e dava tiros com o meu revólver, do alto da chaminé, para dar algum sinal. Devia ser umas três e tantas quando não vi mais o Neptuno, que havia saído só de cueca e camisa branca. Minha esperança era que o João Clemente chegasse em terra e desse algum aviso para me salvarem.” Depoimento de Arzemiro Viana*
Foto: Santos Vidarte (A ronda silenciosa e triste dos escaleres)*
……………………………………………………
*OSÓRIO – UMA CIDADE ENLUTADA: 18 vidas desapareceram com o “Bento Gonçalves”, nas águas da Lagoa da Pinguela.Correio do Povo, Porto Alegre, 23 set. 1947, p.4-16.
Osório, 30 de abril de 2016 – Lilian Maus

Uma semana antes de realizarmos a travessia, o barco Beija-flor desapareceu. Estranhamente ele foi encontrado pelo pescador Marino, amigo do José, à deriva e vazio, próximo ao ponto do naufrágio do Bento Gonçalves. Entendemos, José Ricardo e eu, que ele havia partido antes de nós, talvez pelas mãos de outros aventureiros, de modo a abrir caminho para nossa viagem. Enquanto navegávamos, seguindo o mesmo trajeto do Bento, vim a saber que o José era sobrinho de um dos únicos sobreviventes do naufrágio de 1947.

Nós partimos no dia 30 de abril, às seis horas de uma manhã gelada, das margens da Lagoa do Marcelino, onde funcionava a antiga sede do Porto Lacustre Osório-Torres. Atravessamos a Lagoa do Peixoto e, na entrada do Canal do Caconde, nossa travessia foi interrompida pelo forte vento Minuano, o mesmo que soprava há 69 anos atrás, quando Bento Gonçalves soçobrou nas águas da Lagoa da Pinguela, logo à frente de onde estávamos. Aportamos e amarramos o Beija-flor numa árvore costeira às margens da Lagoa do Peixoto para esperar a força do vento baixar. Mas ele seguiu soprando forte, varrendo as nuvens do céu e modelando carneiros nas águas. À nossa frente, durante a espera, uma roda de gente se formava. Animados, vestindo túnicas brancas, banhavam-se em um ritual religioso na lagoa, ignorando o frio trazido pelo Minuano. Era dia de batismo. Para eles e para nós. Foi uma viagem pelas águas só de ida, voltamos para casa por terra, mas com os pés molhados. Se realizamos algum tipo de pescaria juntos, não foi aquela em que se pesca um espécime para medir seu tamanho e calcular os quilos de carne branca. Saímos à caça de uma espécie de peixe que não pode ser nomeada nem mensurada, porque ela vive apenas nos olhos acurados e famintos dos marrecos e das gaivotas.